ARTIGO – Procedência das manifestações recebidas nas Ouvidorias: Características e formas de tratamento
Por Hélio José Ferreira *
Sumário: As ouvidorias brasileiras enfrentam um dia a dia bastante crítico por conta da quantidade e da variedade de assuntos a elas demandados. Em função disso, necessitam contar com sistemáticas de trabalho claras e objetivas, além de procurar absorver as melhores práticas existentes no mercado para facilitar no alcance de seus objetivos.
Entre as dificuldades enfrentadas, uma diz respeito à classificação das manifestações recebidas dos cidadãos/consumidores em procedentes ou improcedentes. Trata-se de questão bastante ampla, polêmica e complexa para a qual ainda não se conta com uma solução padronizada. Observa-se, todavia, que as práticas adotadas pelas ouvidorias, sejam públicas ou privadas, guardam semelhança entre si e podem convergir para um padrão único de classificação sem grandes problemas.
A questão da procedência ou não das reclamações foi tratada no presente documento amplamente discutido no âmbito do Comitê de Ouvidoria da Associação Brasileira das Relações Empresa-Cliente (Abrarec). O trabalho objetivou ampliar e sistematizar o conhecimento sobre as características e principais dificuldades envolvidas, o papel e as responsabilidades e limitações dos ouvidores que lidam com a matéria, bem como contribuir para que as organizações tenham elementos mais efetivos para classificar e criar parâmetros vinculados à procedência ou não das manifestações.
Não há dúvida de que ao falarmos sobre o que constitui uma manifestação procedente, bem como a melhor forma de se dar tratamento para a mesma, estamos abordando um tema bastante amplo, complexo e polêmico. Antes de tudo, é necessário termos clareza sobre alguns aspectos envolvido nesse conceito de “procedente”.
Ao buscarmos nos dicionários definições para o termo procedente, deparamo-nos com determinadas subjetividades que podem comprometer a real compreensão daquilo que estamos tentando dimensionar adequadamente. Para auxiliar nesse esclarecimento, precisamos lançar mão de conhecimentos específicos inerentes à área das relações de consumo, buscar no pragmatismo do dia a dia os fatos e ferramentas que também possam nos ajudar a melhor compreender o que seja uma manifestação procedente, bem como as características e formas de tratamentos mais adequadas e utilizadas para esse tipo de evento.
A discussão do tema pelo Comitê de Ouvidoria da Abrarec objetivou ampliar e sistematizar o conhecimento sobre as características e principais dificuldades envolvidas, o papel e as responsabilidades e limitações dos ouvidores que lidam com a matéria, bem como contribuir para que as organizações tenham elementos mais efetivos para classificar e criar parâmetros vinculados à procedência das manifestações.
Diante do exposto e tendo em vista contribuir efetivamente com o tema da procedência ou não das manifestações, foram destacados a seguir alguns aspectos mais específicos e de fundamental importância para melhor entender a questão:
1 – O que se entende por manifestação procedente?
- trata-se de algo que já está confirmado. Quanto a confirmado, entenda-se que necessariamente o fato já tenha sido analisado e que foi constatada discrepância/desalinhamento em relação ao compromisso da organização. A análise pode ter sido previamente realizada pela área de atendimento ao cidadão/consumidor ou pela própria ouvidoria, no caso de manifestações a ela encaminhadas diretamente; e
- pode-se entender também procedente como sendo “aquilo que tem fundamento, que é justo, que justifica ter havido a manifestação”. A análise e a fundamentação deve ter como parâmetro os elementos básicos apresentados na manifestação.
2 – Como definir critérios para classificar uma manifestação como procedente ou não?
- precisam estar definidos e divulgados, interna e externamente, de forma clara e objetiva;
- necessitam ser revisados periodicamente;
- não podem prescindir do bom senso por parte de quem irá decidir quanto à procedência;
- devem estar alinhados com a politica de sustentabilidade do negocio.
3 – Os critérios estabelecidos e divulgados podem vir a ser objeto de demanda por parte do cidadão?
- por mais precisos e claros que sejam os critérios estabelecidos, haverá sempre a possibilidade de os mesmos serem questionados, inclusive judicialmente, por parte de quem se sinta prejudicado. Esse é um direito inalienável do cidadão, consumidor ou não!
4 – Quais são os parâmetros para estabelecer de forma adequada os critérios de procedência?
- a politica de relacionamento praticada pela organização com o cidadão é de fundamental importância nesse processo;
- observância às normas vigentes com relação ao atendimento ao cidadão;
- os princípios e valores éticos e morais adotados pela Instituição;
- as leis que constituem a proteção e defesa do consumidor; e
- o padrão de governança adotado e perseguido pela empresa.
5 – Quem deve determinar a procedência ou não de uma manifestação?
- normalmente essa tarefa é atribuída pelas organizações ao ouvidor, que atuará em estreita parceria com áreas/gestores da organização ;
- existem Instituições em que esse papel fica a critério de um Comitê sob coordenação do ouvidor. Todavia, isso pode gerar diversos problemas já que as áreas representadas podem ter opiniões divergentes;
- há alguns raros casos em que esse papel, inclusive a ouvidoria, fica delegado à área jurídica da organização ou, ainda, á área de Nesses casos, para evitar o conflito de interesses e não macular o necessário e fundamental principio de independência da ouvidoria, cabe a ela a decisão final quanto à procedência ou não de uma manifestação.
6 – Confirmada a procedência, quais os passos seguintes?
- colher posicionamento escrito da área/gestor responsável pelo assunto da manifestação;
- solicitar a correção necessária do respetivo processo de trabalho. Isso, logicamente, deve ser efetuado pela área responsável pelo processo;
- informar o cidadão sobre as providências adotadas;
- reparar ao reclamante de eventual dano causado. Algumas organizações atribuem alçada ao ouvidor para cumprir com essa reparação;
- levar o caso para conhecimento da autoridade máxima da organização; e
- divulgar as mudanças eventualmente ocorridas para os demais funcionários da organização. Isso geralmente é realizado através de relatórios periódicos ou comunicados internos.
7 – Existem limites para a atuação do ouvidor nesse processo?
- sim, o ouvidor fica restrito às suas atribuições e dentro das competências que lhe foram atribuídas oficialmente pela autoridade máxima da organização. Algumas Instituições estabelecem alçadas específicas e limitadas para reparação de eventuais danos;
- é extremamente importante que os limites de atuação do Ouvidor estejam estabelecidos e divulgados anteriormente;
- um principio fundamental a ser observado e respeitado é que o ouvidor não tem poderes para desfazer ou mandar desfazer nada. Ele simplesmente deve atuar para persuadir as áreas a realizarem as mudanças necessárias;
- há que se tomar cuidado para evitar que a atividade de ouvidoria se confunda com a de correição. Isso pode gerar conflito de interesses e, claro, prejudicar a atividade de ouvidoria em si. A ouvidoria tem também uma importante função que é ajudar no processo de mudança da cultura da organização e do cidadão, isto é o que se chama de aculturamento. Ao analisar conflitos, dialogar com setores responsáveis na busca de solução permanente, vai implementando a cultura da reflexão para o respeito e equilíbrio nas relações, principalmente naquelas concernentes ao consumo.
8 – Existem riscos para as ouvidorias no tocante ao tema da procedência das manifestações?
- desgaste da imagem do componente;
- enfraquecimento e boicote às atividades de ouvidoria tanto interna quanto externamente;
- geração de conflito de interesses;
- judicialização de demandas;
- fortalecimento dos argumentos do reclamante para impetrar ação judicial contra a organização.
Na prática, essa questão da procedência das manifestações ainda é vista e tratada de forma bastante heterogênea e parcimoniosa pelas Instituições brasileiras, sejam públicas ou privadas. Não existe ainda um padrão de referência nem mesmo dentro dos próprios segmentos. O que se observa são iniciativas isoladas por parte de algumas organizações/ouvidorias com o intuito de atender às suas necessidades imediatas.
Observa-se que o padrão estabelecido por ouvidores de várias organizações para classificação das manifestações recebidas como procedentes ou improcedentes segue basicamente os seguintes critérios:
Procedentes – são assim caracterizadas quando o fato mencionado tenha ocorrido de forma incorreta, irregular, em desacordo com as normas/procedimentos, legislações ou regulações e que tenha causado algum tipo de prejuízo, dano ou transtorno ao cidadão. As manifestações procedentes podem ser subdivididas em:
- resolvidas – quando houve a efetiva aplicação de medidas corretivas ou alteração/melhoria no processo/procedimento/regra e/ou reparo junto ao cidadão;
- em andamento – quando já foi realizada a avaliação dos fatos e está em processo de tratativa ou adequação;
- sem solução – quando não houve a solução ou melhoria necessária concretizada pela área ou então não ocorreu a resolução junto ao cidadão.
Improcedentes – caracterizadas quando não houve qualquer irregularidade interna ou nas legislações especificas ou, ainda, dano ou prejuízo ao cidadão. Algumas manifestações, apesar de classificadas como improcedentes, em função de não ter ocorrido qualquer irregularidade, podem servir como instrumento para que a ouvidoria proponha melhorias nos processos de trabalho da organização ou, ainda, auxiliar o cidadão no encaminhamento da questão apresentada. Essas manifestações são classificadas como improcedentes com melhorias.
O Sistema de Ouvidoria do Estado de São Paulo utiliza-se de conceitos diferenciados em relação ao padrão adotado pelas demais organizações, sendo as manifestações classificadas como:
Encerradas – não atendidas: quando os órgãos ou entidades direta ou indiretamente envolvidos na questão não solucionaram a manifestação do usuário ou seja, o usuário não teve sua solicitação atendida, não foi expedido o documento solicitado e nem prestado o serviço.
Encerradas – atendidas: são aquelas que, tendo apresentado os elementos básicos que deram condição de análise, resultaram em deferimento do pedido. Esse deferimento pode se dar por determinação legal, a bem do interesse publico ou por acolhimento do interesse individual do usuário.
Encerradas – inconsistentes: são aquelas que não têm amparo legal ou em que se constatam dados e alegações sem fundamento ou falsos. As manifestações inconsistentes padecem de vícios formais como dados incorretos ou imprecisos. Não se estabelece vinculo entre a manifestação e órgão indicado. A análise da manifestação não apresenta elementos que autorizem sua apreciação. Nesses casos, a ouvidoria presta esclarecimentos ou orientações ao cidadão.
Independentemente de qual seja o critério adotado, não há dúvida de que o ouvidor precisa utilizar de bom senso para identificar nas manifestações recebidas a verdadeira mensagem nelas contida e, claro, estar atento para propor à organização as eventuais mudanças necessárias para manter a satisfação e a confiança do cidadão e, consequentemente, a sustentabilidade do negócio.
(*) Hélio José Ferreira. Economista pós-graduado em Relações Internacionais pela Universidade de Brasilia, servidor aposentado do Banco Central do Brasil, tendo sido o responsável pela criação da Ouvidoria e exercido a função de ouvidor daquele Órgão por sete anos. Atualmente é Diretor da Abrarec e membro do Comitê Setorial de Ouvidoria da Entidade.