Entrevista com o novo titular da Secretaria Nacional do Consumidor

Entrevista com o novo titular da Secretaria Nacional do Consumidor

“Com mercado concentrado, empresas têm muito poder no Brasil”, diz novo titular da Secretaria Nacional do Consumidor

Advogado gaúcho Luciano Benetti Timm estima que 10 milhões de processos que tramitam no país envolvem direitos do consumidor

 

Após tornar-se uma referência no país em regulação de mercado e intermediação de conflitos entre consumidores e empresas, o advogado gaúcho Luciano Benetti Timm aceitou o convite do ministro da Justiça, Sergio Moro, para estrear no Executivo: lidera a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). O órgão é responsável por regular e elaborar políticas de proteção aos direitos dos consumidores e harmonizar as relações (muitas vezes turbulentas) entre clientes e fornecedores. Timm – doutor e mestre em Direito pela UFRGSe pós-doutor na UC Berkeley, nos EUA – pretende irradiar ideias que defende em publicações acadêmicas e que o consagraram na prática jurídica, como a de que estimular a negociação e a livre concorrência pode ser mais eficiente à defesa do consumidor do que arrastar disputas até os tribunais.

Como foi sua indicação ao Senacon pelo então futuro ministro da Justiça, juiz Sergio Moro? Vocês já se conheciam? 
Nos conhecíamos do mundo acadêmico, de palestras e congressos. Por vezes, eu tinha mandado alguns artigos para ele ler, de modo que ele já me conhecia do plano acadêmico. Não sei os motivos pelos quais ele me indicou, creio que sentiu um alinhamento de como eu via essa questão dos consumidores. Vamos tentar reforçar os direitos dos consumidores, mas tentar fazer de um modo mais eficiente e que harmonize as relações, o que a gente está chamando de desjudicialização. Esperamos que haja mais harmonia e maior cumprimento espontâneo das leis. Quando vemos o número de processos nessa área, percebemos que há descumprimento da legislação.

Como o senhor pretende estimular o cumprimento espontâneo? 
Por vezes, um sistema judicial lento pode incentivar o descumprimento da lei. Então queremos tirar esse peso do Judiciário, e fazer com que se avance nos mecanismos negociais. Se não conseguirem resolver, pode-se envolver os coletivos, como as associações, e, se ainda assim não funcionar, temos de fazer a mediação. E aí, temos a plataforma o Consumidor. Gov, na qual a gente deposita bastante otimismo. Só no ano passado, foram mais de 500 mil reclamações atendidas.

Por que evitar que os processos cheguem à Justiça? 
Como acadêmico, eu já tinha feito pesquisas para o CNJ (Conselho Nacional de Justiça) de que o custo estimado de um processo judicial seja de R$ 2 mil por ano ao contribuinte. Cada processo de direito do consumidor dura, em média, três anos. Portanto, cada processo que não chega ao Judiciário traz economia ao contribuinte. No ano passado, tivemos aproximadamente 1,5 milhão de resoluções pelo Consumidor.Gov, além da mediação dos Procons, então imagina a economia de dinheiro público. É importante que as leis sejam espontaneamente cumpridas pelas empresas, se não eu preciso movimentar o aparato judicial, que é caro. Às vezes, a pessoa está reclamando por uma coisa que custa R$ 100, que é importante para ela, mas, por outro lado, isso gera custo.

Essa judicialização na relação de consumo está se acelerando no país?
O levantamento Justiça em Números, do CNJ, indica, com exceção do último ano, que o número de processos vinha aumentando. A bem da verdade, desde a publicação da Constituição Federal de 1988, o número de processos vem crescendo consideravelmente, inclusive o Judiciário vem fazendo esforços para diminuir esse estoque. O número total de casos tramitando hoje é em torno de 80 milhões, e podemos estimar que mais de 10 milhões possivelmente sejam demandas envolvendo direitos do consumidor. O Brasil é um caso único, até onde eu saiba, de volume de processos judiciais.

 

“Nos EUA, há muitas empresas em vários segmentos de mercado. Por exemplo, muitos bancos estaduais e municipais. Isso traz concorrência e respeito ao consumidor. No Brasil, há poucos. Com o mercado concentrado, as empresas têm muito poder, e as pessoas, pouca escolha e pouco poder.” LUCIANO TIMM – Secretário da Senacon

 

Ao que se pode atribuir esse aumento?
Olha, é um misto de várias coisas. Se a gente for ao campo da sociologia, vamos ver que a cultura brasileira, diferentemente do que ocorre em outros países, é de não cumprimento da lei. Em um campo jurídico, primeiro houve uma série de leis que garantiram uma série de direitos. Nossa Constituição é um exemplo: é uma das maiores do mundo, explica tudo em detalhes. E, como disse Roberto Campos (economista, político e diplomata, 1917-2001), ninguém pensou em quanto iria custar. Na sequência, foi criada uma série de outros estatutos e legislações. Houve uma inflação legislativa. Somado a isso, houve inflação de faculdades de Direito. O Ministério da Educação (MEC) foi bastante liberal na criação de cursos jurídicos: o Brasil é um dos três países do mundo em número de faculdades de Direito, que eleva também o número de advogados. E a faculdade de Direito não treina mediação; treina o litígio. É o contrário do que ocorre nos Estados Unidos, onde há disciplinas de mediação, negociação e arbitragem. E tem um quarto ponto: o funcionamento do próprio poder Judiciário. Embora se esteja tentando mudar isso, os processos não têm precedentes vinculantes. Isso gera recursos e outros processos e faz com que não haja um ambiente propício à mediação, e, quem sabe, tampouco para o cumprimento das regras. Como diremos que uma empresa está agindo de má-fé se há interpretações judiciais diferentes? É um processo que vem de 30 anos, e acho que este é um momento no Brasil em que se está falando de levar as finanças públicas a sério e trabalhar mais em mecanismos não estatais, e sim autônomos.

O senhor menciona os Estados Unidos como exemplo a ser seguido, mas o país leva a fama de ser um grande litigante mundial. Lá, processa-se por qualquer acidente de trânsito ou ofensa. 
Quando se diz que os EUA são uma sociedade beligerante, na verdade se trata de uma sociedade na qual as pessoas lutam pelos seus interesses, mas acionam menos o Judiciário pois sabem o que o Judiciário vai dizer. Em casos de acidente, mais de 90% dos processos, nos EUA, terminam em acordo, antes mesmo que o juiz se envolva no caso. No Brasil, o índice de acordo fica em torno de 10% nesses casos. Além disso, lá há muitas empresas em vários segmentos de mercado. Veja os exemplos dos bancos: há muitos bancos estaduais e municipais naquele país. Isso traz concorrência. No Brasil, há poucos. Com o mercado concentrado, as empresas têm muito poder, e as pessoas, pouca escolha e pouco poder. Isso leva as companhias americanas a respeitarem mais os consumidores.

Quais mecanismos podem gerar mais negociação?
Algumas coisas já estão acontecendo no Brasil. Hoje, nosso país já é o quarto em volume de arbitragem no mundo, que na área comercial avançou muito. São poucos os litígios entre empresas e os sócios que vão para o Judiciário. A reforma trabalhista também previu a negociação para alguns casos envolvendo empresas e seus funcionários hipersuficientes (mais bem pagos). Então há novas fronteiras que podem ser pensadas na área do consumidor. Há países em que é admissível a arbitragem entre associações de consumidores e associações de empresas, quem sabe resolvendo a disputa de uma maneira mais ampla e coletiva. A plataforma Consumidor.Gov é um exemplo. Tudo o que a gente puder avançar em tecnologia significa exponencialidade, atingir muito mais gente por um custo menor.

A tecnologia também traz desafios: das 10 empresas mais reclamadas no site Reclame Aqui, seis são de aplicativos ou de lojas online. Também há muitas reclamações sobre a forma como o marketing ocorre na internet. O internauta brasileiro está bem protegido? 
No caso das empresas na internet, às vezes as reclamações são altas por que a empresa também tem um grande volume de operações. Tem de haver um controle estatístico. Uma plataforma digital que é caso conhecido tem até seu próprio sistema de solução de disputas, o eBay, nos EUA. Ela resolve 6 milhões de disputas por ano. Quanto ao marketing, uma coisa que muito me preocupa é o marketing para crianças feito por youtubers. Isso tem de ser olhado com mais cuidado. A criança realmente é vítima, não tem capacidade de escolha. Aquilo que antigamente acontecia na TV, com as propagandas, hoje acontece com vlogers e youtubers.

E como está o desempenho das agências reguladoras da defesa dos direitos do consumidor? 
Este é um sexto fator de litigância: as agências reguladoras, no Brasil, não vêm desempenhando um papel como exercem as norte-americanas. As grandes empresas que são rés por aqui são aquelas que atuam em mercados regulados: telefonia, aviação, sistema bancário. Nossa regulação é imperfeita, faz com que haja descumprimento, que a livre iniciativa não funcione bem e que se viole o direito do consumidor.

 O que tem dado errado nas agências reguladoras?
A mão invisível do mercado funciona como modelo ideal, mas os economistas sabem que o mercado tem imperfeições, como assimetria de informações e concentração. Mas também se estuda que a própria regulação não é perfeita. Ela é fruto de ato humano, e o ato humano é imperfeito. O que dizem os estudiosos é que o modelo brasileiro falhou mais porque os últimos governos apostaram em um excesso de regulação. Isso gerou ineficiência e mais concentração. Por exemplo, se eu regular demais os planos de saúde, posso gerar uma concentração, em que apenas as grandes empresas poderão competir em custo. Além disso, há crítica às nomeações políticas. O que se viu foram loteamentos políticos. Isso gera imperfeição na regulação. Salvo algumas exceções, quem está ali não é um especialista.

Uma das decisões polêmicas de 2018 foi da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), que mudou a coparticipação nos planos de saúde e flexibilizou critérios de reajuste – resolução suspensa logo em seguida pelo Supremo Tribunal Federal. Nesse caso, a agência deixou de pensar nos consumidores? 
Essa é uma questão complexa, e depende uma análise de impacto regulatório. Essa ferramenta de análise, por sinal, agora é exigência legal, dos artigos 20 e 21 da Lei da Introdução das Normas do Direito Brasileiro. Quando você está falando em plano de saúde, por um lado, o mercado está se concentrando, não é uma boa notícia. Ao mesmo tempo, as pessoas começam a viver mais, os tratamentos médicos também aumentaram de preço. Por outro lado, a gente vem de uma crise econômica, as pessoas perderam o emprego ou os salários perderam poder de compra. É um dilema parecido com a reforma da Previdência, que também coloca em xeque coisas sensibilíssimas do ponto de vista humano, mas é a dureza dos números. O seguro tem uma base atuarial, base de probabilidade de ser acionado, mas essa base matemática acaba afrontando aspectos fundamentais – e o direito à saúde é um direito fundamental.

 

“O mundo digital hoje é feito de rankings. Comerciantes saberem quem é bom ou mau pagador é algo positivo. Mas algumas situações que o código de defesa do consumidor proíbe, como constranger e discriminar, caso aconteçam, têm de ser resolvidas.” LUCIANO TIMM – Secretário da Senacon

 

Outra medida que causou reação negativa de entidades de defesa do consumidor foi a aprovação, no apagar das luzes do governo temer, da Lei do Distrato, que subiu para até 50% a multa de quem desiste da compra de um imóvel na planta. Faltou sensibilidade com o bolso do cidadão? 
Não tive acesso às contas para saber se foi bom ou ruim. O que a gente sabe é que havia uma crise imobiliária grande no Brasil, mas também há um aspecto das pessoas que tomaram dívida, algumas por investimento, outras por decisão. Aqui aspectos humanos também têm de ser levados em conta. Esses 50%, que constituem até um número meio cabalístico, geram esses embates verdadeiros. Não há uma solução fácil para um problema assim complexo.

Essas decisões não criam uma sensação de que a política está atendendo ao interesse do mercado e deixando de lado o consumidor? 
Olha, não tenho elementos para dizer isso. A gente teria de ter pesquisas para identificar esse tipo de percepção entre a sociedade. O que temos aqui são as nossas plataformas que estão abertas para as pessoas que se sintam prejudicadas acessarem.

E quanto ao o cadastro positivo: há quem tema a difusão de informações particulares, mas há quem diga que isso pode baratear o crédito. Qual é sua posição? 
Se funcionar como deveria, não é algo negativo. O mundo digital hoje é feito de rankings. Há rankings que prestam serviços muito bons para eu saber quem são os melhores motoristas dos aplicativos de transporte, por exemplo. Se você é um bom usuário, tem acesso aos melhores motoristas. Então, como eu comentei, existe uma falha de mercado, que é a assimetria de informações. Se você reduzir essa assimetria, é algo positivo. O que não pode é haver discriminação.

O varejo brasileiro não leva com muito rigor os cadastros negativos de crédito e deixa de manter uma relação direta com seus consumidores? 
Toda vez que você consegue reduzir essa assimetria de informações tende a ser positivo ao mercado. Os comerciantes saberem quem é bom ou mau pagador é algo positivo. Mas algumas situações que o Código de Defesa do Consumidor proíbe, como constrangimento, discriminação, caso aconteçam, têm de ser resolvidas. Isso também entra na questão da concentração de mercado. O ministro (da Fazenda) Paulo Guedes falou, no discurso de posse, de apostar um pouco mais na abertura do mercado para o consumidor ter mais opções. Efetivamente, você tem um sistema de registro, e, com poucas opções, o consumidor não consegue nem negociar. Talvez o problema não esteja necessariamente no cadastro, mas na falta de opções.

 
FONTE: SITE GAUCHAZH: VEJA A MATÉRIA ORIGINAL